SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA THRASH COM H
“Precisamos Falar Sobre o Kevin”, Lionel Shriver, 2007, 466 pp., Editora Intrínseca
Além de tudo o q há de óbvio e de tácito em se gostar de Slayer, tem outra coisa q admiro nos caras q vejo pouco comentada: a sacada q tiveram, desde cedo (já no “Hell Awaits”), de q ficarem falando sobre Satã, anticristos e diabinhos anos a fio ñ levaria a lugar algum. Foram refinando o discurso, no q percebo Jeff Hanneman, Tom Araya e Kerry King bastante diversos nas letras q fazem.
King passou a atacar a Igreja Católica, a hipocrisia das religiões etc. Às vezes até monotonamente. Hanneman e Araya passaram a falar do pior dos demônios: O PRÓPRIO SER HUMANO. Daí, dá-lhe psicopatias, criminosos insanos, incestuosidades, estupros e estupradores surgindo firmemente nas letras a partir do “South Of Heaven” e tendo sua plenitude no “Seasons In the Abyss” e no “Divine Intervention”. Até ressurgirem como assunto palpitante, timidamente no “Christ Illusion”, e novamente plenos em “World Painted Blood”.
O q tem a ver o Slayer com “Precisamos Falar Sobre o Kevin”? Simplesmente o fato de tratar-se dum livro (fictício) de memórias sobre um sociopata. Kevin Khatchadourian. Personagem fictício pra lá de verossímil: moleque estadunidense de 16 anos preso por haver chacinado 7 colegas, uma professora e 1 servente de ginásio em sua escola em Nova Iorque. Coisa meiga de se escrever.
Tem a ver ainda com a abordagem q a autora, Lionel Shriver, dedica ao enredo, em forma de relatos maternos ao ex-marido, por meio de cartas cronologicamente situadas, da vida de Kevin e das encanações, outrora fantasmagóricas/imaginárias, tornadas pesadelo. Eva Khatchadourian, a mãe, percebia algo estranho no filho desde seus primeiros dias: o massacre por ele cometido, assim como tais cartas, a faz (a nós tb) juntar peças dum quebra-cabeça doentio.
O massacre em si, maquiavelicamente arquitetado e executado, é cozinhado ao longo da trama extensa, de modo a perturbar quem a lê com angústias indefectíveis e expectativas ambivalentes para com o evento, descrito com todas as letras, tons e cores. O q ñ faz com q o livro até ali seja mera encheção de lingüiça, nada disso.
Eva revela-se perplexa com a repercussão de vizinhos e colegas de Kevin, alguns obviamente horrorizados, outros muitíssimo fascinados e ENCANTADOS com o ocorrido. Relata colegas dando entrevistas à tv se ufanando de terem-no conhecido, como ainda oferta vultuosa em dinheiro pela casa onde moravam – quando o q imaginava era q nunca saísse dali.
***
Impressiona a fidedignidade dos relatos de cobertura da mídia – sensacionalista – sobre o ocorrido, sobre Kevin e sobre sua família. Tanto q o livro ñ soa em nenhum momento ficção, mas como LIVRO DE MEMÓRIAS de fato. Outro momento bastante tocante achei o da entrevista – exclusiva – a canal de tv concedida por Kevin, já na prisão. Sociologicamente mórbida e mordaz.
Mostra-se ainda ela personagem bastante complexa, assumidamente inepta para a maternidade, porém dedicada a buscar e a exorcizar SUA CULPA naquilo tudo, como ainda a especular fatores variados q pudessem ter “tornado” Kevin daquele jeito. E nisso, a autora é exemplar em jogar com pistas falsas e com NENHUMA RESPOSTA CONCLUSIVA.
Levanta o q a mídia teria especulado sobre “músicas nocivas” q Kevin ouvia, em insinuação verossímil contra o heavy metal. Inconclusivo. Relata episódios horrendos com bichinho de estimação (chavão, embora real, de vida pregressa de sociopatas) e com a irmãzinha, mas q Eva – e nós, q lemos – ñ teve/temos confirmação. Especula a origem estrangeira virtualmente daninha – Khatchadourian é sobrenome armênio, vindo da mãe – no q a autora habilmente joga com a paranóia estadunidense do 11 de Setembro. Teria a ver, mas tb ñ dá pra cravar.
A permissividade e postura redneck do pai, Franklin, desses estadunidenses orgulhosos das guerras antigas e monumentos patrióticos a q sempre fez questão de levar o filho, tb é posta na mesa. Tanto como tê-lo ensinado a atirar e ter-lhe dado espingarda de Natal. Como a conduta de fazer pouco caso às suspeitas e alarmes de Eva. O dado sociológico de ambos os pais serem um tanto fúteis – Eva, redatora de manuais de viagem pra gente rica, e q deixa de trabalhar com o nascer de Kevin; Franklin trabalhava frugalmente como arranjador de locações exóticas para comerciais e filmes hollywoodianos – tb consta. Como ainda a motivação vaga de terem tido filhos. E nada parece conclusivo. Ao mesmo tempo em q TUDO parece ter conspirado pro monstro q Kevin “se tornou”.
Curioso (e positivo) achei ñ haver qualquer esboço de religião, religiosidade, demônios ou encostos na causalidade das coisas, no q vejo outro tremendo acerto da autora, inglesa, para com o livro. Q nunca cai na vala comum da Psicologia de Boteco. Tb ñ há qualquer aceno clichê em retratar Kevin como “capeta em forma de guri” na convivência e desempenho escolares. Ponto pra Shriver de novo.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=AMmMN5Ge570 [/youtube]
Quando iria opinar sobre me parecer este um livro de q Hollywood provavelmente jamais adaptaria pra cinema, fui procurar capinha e me deparei com resenhas sobre o filme JÁ FEITO. Pela BBC – ufa! – com Tilda Swinton (perfeita!) e John C. Reilly (putz) fazendo os deploráveis e deplorados pais de Kevin. Ganhador de Palma de Ouro em Cannes e o caralho. O trailer acima conta até com depoimento da autora endossando a adaptação, mas pretendo ñ assistí-lo. Pra ñ macular todo o horror mental q fui de alguma forma compondo enquanto lia o livro.
“Precisamos Falar Sobre o Kevin” parece o anti-manual a casais interessados em terem filhos. Gera MEDO e AVERSÃO em tê-los, ter um q seja. Consta na orelha ter sido recusado por mais de 30 editoras, e penso q se ñ for puro marketing isso, faz total sentido. Livro denso, tenso, original e insólito desde o início, contando com surpresa ao final (ñ termina no massacre, tendo atrocidade outra e realmente INESPERADA descrita na seqüência), q li com uma constante alternância entre FASCÍNIO e NOJO desmedidos.
E q conta com o leitor/leitora convocado(a) a alternar-se entre empatia, pena, repulsa, medo, raiva e embasbacação com Eva, quase q a real protagonista. Alternada entre o conformismo, a perturbação e o vazio a todo momento.
É, fácil, um dos 5 melhores livros – e o mais repugnante – q já li na vida. E acho q já li mais de 15. Mais q recomendar, considero LEITURA OBRIGATÓRIA a quem tiver como obrigatórias as letras mais mórbidas e funestas no thrash metal, bem como as “líricas” de Araya e Hanneman no Slayer.
****
CATA PIOLHO CC – Jogos dos 7 Erros capístico:
(último post de 2011. 2012 já está logo ali)