DEUS EX MACHINA
por Jessiê Machado
Sabe aquele papo de biscoito da sorte de que “o importante é a jornada?” Pois é…
Em 1994, ainda sem internet, já tínhamos uma grande facilidade de ter materiais (principalmente com o boom dos cds) e acesso a shows de bandas médias e grandes do mundo todo, desde que você morasse ou se deslocasse para São Paulo. Menos mal, considerando que na década anterior você precisaria se deslocar para Minnesota.
Mas em Goiânia tudo ainda era só um sonho e shows “grandes”, até então, foram apenas Dorsal e Ratos, sem contar que a Rock Brigade (como qualquer outra fonte de informação metálica) chegava com delay. Por isso levamos (eu e a comunidade banger local) um grande susto ao descobrir que um dos maiores festivais de metal do mundo faria sua versão no Brasil! Com Slayer e Black Sabbath! Monsters Of Rock! Comoção total.
Problemas: faltava uns 10 dias somente, estávamos a mais de 1000 km e cada um mais quebrado que o outro.
Quando um grande amigo, até hoje, que se chama Júlio disse que o pai era caminhoneiro e ia/voltava toda semana para SP e que iria falar com ele para ver a possibilidade de uma carona. Sendo que dava pra ir eu, ele e mais um.
Falou com o tio, eu confirmei e chamei outro amigo (Josmar, éramos o “trio J”). O show era dia 27/08, um sábado, iniciando-se às 12h, com doze horas de shows. O tio do amigo sairia na quinta com previsão de chegada na sexta. Ou seja: teríamos que nos virar entre sexta e sábado.
O show custava R$30 na pista, consegui R$50. Ou seja: ainda me sobrariam R$20 para alimentação, viagem, emergência… De quinta até domingo. Em São Paulo! Meu amigo tinha conseguido R$80. Estava melhor que eu.
Em cima da hora o Julio desistiu, acho que pensou bem na barca furada: andar 1000 km sem ter onde ficar, como ficar basicamente com o dinheiro do ingresso, em São Paulo. Foi o único sensato. Mas eu só conseguia pensar no Slayer e Black Sabbath e achava que íamos conhecer alguém e dormir na casa desta pessoa. Putz!
Óbvio que menti para minha mãe que estava na casa de um amigo qualquer, já que ela (e mãe nenhuma) nas circunstâncias permitiria.
***
Chegamos na sexta-feira umas 9h da manhã, já tinha gastado R$10 dos R$50 em alimentação na ida, o tio do amigo nos deixou na Freguesia do “Ó”, pegamos ônibus e fomos descobrir onde era o Pacaembu. De lá, fomos na Barra Funda, perguntando até chegar na Woodstock para comprar o ingresso.
Ainda faltavam 24 horas para o show e só me restavam R$5. Tive a idéia de ir para a Rodoviária do Tietê, pois chegariam bangers lá, e como eu conhecia gente do Brasil todo (via carta, por causa do zine) conseguiria fácil uma hospedagem e deslocamento. Ao menos era o que o meu otimismo juvenil sem noção achava.
De fato chegavam cabeludos aos montes, mas rapidamente se dispersavam. Puxava papo, falava do quanto éramos bangers de verdade, que o tal espírito do metal corria em nossas veias e coisas do gênero. Teve uns caras que queriam, inclusive, nos levar juntos (deviam ter uns 16 anos) mas as mães (ou tios) logo os demoveram da idéia. E vendo em retrospectiva, éramos cabeludos, meio barbudos (o que os 19/20 anos permitiam), com roupas pretas rasgadas, cheias de patches. Mendigos quase.
Anoiteceu: vieram o frio, a fome e o sono. Passamos a noite na rodoviária, que se por um lado era seguro, fazia muito frio e não podia deitar em lugar nenhum, que o segurança já cutucava. De madrugada, o frio cortava como navalha. Quando o metrô voltou a rodar, ficamos andando de um lado a outro. Era quentinho e podíamos dormir nas cadeiras. Assim ficamos fazendo até às 9h de sábado.
Resolvemos, dado o perrengue e a falta de dinheiro (o meu já tinha acabado; meu amigo devia ter uns R$15) ir na Woodstock e vender nossos ingressos para comprar passagens de ônibus de volta para Goiânia. Chegando na loja, devia ter umas 500 pessoas de fora, um burburinho de cabeludos de todo o país. Naquele momento, percebemos que não podíamos desistir: era histórico, tínhamos ido longe demais para desistir. Chance única. Iríamos ao show e depois pra BR para pedir carona. De novo a visão juvenil das coisas.
Resolvemos bater perna na Galeria do Rock, rumamos para lá e ficamos babando nas coisas de loja em loja até dar a hora do show. Estava passando os Lps, quando passa uma menina que eu conhecia de vista de Goiânia; pensei: “que louco ver essa mina aqui”. Passou outra, mais outra e a irmã de um amigo veio me cumprimentar! Era uma excursão de Goiânia cheia de pessoas que eu conhecia, inclusive alguns amigos próximos. Foi um choque positivo. Contei pra eles a história toda e veio o cara que organizou (Kleber) falar comigo, chamando pra ficar com eles e ir embora pra Goiânia no ônibus. Expliquei que estávamos sem dinheiro nenhum. Ele disse que estava tudo certo. Inclusive a galera dividiu comida, água e ainda pagaram lanches pra gente na volta.
Toda história tem um “deus ex machina”. Esse foi o meu. Encontrar uma excursão da minha cidade em uma das maiores Metrópoles do mundo.
***
Ah, já ia esquecendo dos shows, que acabaram ficando menores do que a jornada, de fato. Pouca coisa lembro do Angra e Dr. Sin, que fizeram shows pequenos. Do Viper, lembro que a galera interagiu com o cover do Queen. O Raimundos destruiu tudo, foi um show insano. Nessa altura, já estava bem cheio. Comecei o show perto do palco, mas as ondas te levavam de um lado ao outro. Foi insano. Insano! Eram uma enorme banda nessa época.
Curti bastante o Suicidal, mas havia uma tensão porque viriam Black Sabbath e Slayer. A galera estava tensa mesmo, inquieta. Tipo esperando a barragem romper e vir uma avalanche de água. Sinceramente, curti o Black Sabbath demais e lembro bem dos trejeitos e traquejos do Tony Martin. Dava vontade de chorar ao ver quem moldou sua vida, ao vivo. Foi muito foda. É tipo sofrer um acidente automobilístico: você fica em transe e em choque. Parece um sonho e você não tem certeza do que é realidade ou delírio.
Quando, de repente, “Hell Awaits” anuncia o apocalipse. Se você nunca viu Slayer ao vivo, é uma experiência que não se passa incólume. Não existem fãs como os da banda. Nego sai do nada, te segura e grita “Slayeeerrrr”. O tempo todo. O pau come. Você não sabe pra onde olhar. Todo mundo é seu amigo a ponto de te abraçar, chutar, empurrar, bater cabeça junto. Temi pela minha vida caso caísse.
Acabou o show e o festival pra mim, fui pro fundo dormir (uma cobertura que estava em cima do gramado) enquanto o Kiss tocava, até alguém da excursão me acordar por volta de uma da manhã, que iríamos embora.
Que jornada!
FC
4 de setembro de 2019 @ 12:03
Grande jornada e excelente post! Foram quantas horas de viagem de caminhão e de ônibus? E o leite com pêra aqui de São Paulo achava que era grande coisa ficar algumas horas na porta do metrô esperando abrir pra poder voltar pra casa.
André
4 de setembro de 2019 @ 13:39
Não tenho nenhuma história como essa. Mas, deve ter valido a pena, no final das contas. Hoje, virou corriqueiro turnês gringas passarem por aqui. Naquela época, era um acontecimento.
märZ
4 de setembro de 2019 @ 19:01
Massa! Eu estava lá e também passei por algo parecido. Tinha 25 anos na época. Não me lembro de tantos detalhes, mas foi mais ou menos assim:
Eu morava em Cachoeiro do Itapemirim – ES, cidade onde vivi dos 0 a 27, e já tinha tido algumas experiências de shows gringos no RJ e SP, e o perrengue não me era estranho nem assustava. Então fomos eu e um amigo intercambista sueco de 1’98”m e cabelo loiro liso até a bunda, o Martin, de busão até o Rio, onde chegamos de madrugada e pegamos o primeiro carro pra São Paulo. Chegamos na capital paulista já na parte da tarde e nos juntamos a outros cabeludos mendigos numa caravana até a Galeria, onde compramos ingresso e almoçamos. Em seguida fomos pro local do show.
Entramos e pegamos o finzinho dos Raimundos, e me lembro que a galera estava insana, e cobriam Rodolfo de cuspe do gargarejo. Encontramos uma galera de Cachoeirenses que tinham ido de excursão e colamos com eles, penetrando o máximo possível no mar de gente.
Me lembro que o Suicidal fez um show impecável, de muita qualidade, som em cima, parecia cd. Sabbath foi foda, ainda que com Tony Martin no vocal. Pra compensar, tinha Bill Ward na batera, na única vez que consegui vê-lo ao vivo. Slayer foi catártico, abertura com o “Sai Garrote” do Hell Awaits e a própria na sequência. Foda! Kiss também foi muito bom, afinal sempre fui fã e estavam excursionando o Revenge, que é o último disco deles que prestou.
No final, Martin se perdeu e eu fiquei procurando o doido, que não falava português muito bem. A altura e o cabelo ajudaram a encontrar. “Jah beixei uns 5 meninahs!” – me disse, com um sorriso no rosto.
Saimos com a turba, pegamos um bus até a rodoviária e uma eternidade depois, chegamos de volta a Cachoeiro, moídos e felizes.
Jessiê
4 de setembro de 2019 @ 21:14
FC saímos de Goiânia por volta das 14 horas de quinta feira. rodamos direto até bem próximo da capital quando o motorista parou pra dormir. Era um caminhão pequeno só com a cabine sem cama atrás como scanis e carroceria de madeira. Resultado eu e o amigo tivemos que ir pra carroceria passar a noite pro motora descansar. Quase morremos de frio. Foi a primeira noite sem dormir. Chegamos na freguesia do “O” por volta das 9 da manhã de sexta sendo que o show era meio dia de sábado. mais uma noite sem dormir na rodoviária. E na volta saímos por volta da uma hora da madrugada e chegamos em Goiânia a noite. Dormi quase a viagem toda mas era aqueles ônibus antigos impossíveis de se dormir por causa das cadeiras pequenas e que pouco reclinam, sem ar condicionado sem nada.
Jessiê
4 de setembro de 2019 @ 21:26
O engraçado é que lembro de diversos detalhes da jornada em si como pessoas que conversei, uma mina de olhos azuis meio gordinha, alta, branquinha de cabelos pretinhos, bem paulistana de “Ôra Meu”, o que comi. Mas não lembro muito dos shows em si, apenas vagamente de pedaços. Lembro muito do Tony Martin porque estava hipnotizado. Da guitarra do Jeff, da grua, do telão, do Gordo cantando no show do Raimundos, dos carecas que apareceram no meio do show do Slayer, dos cosplay do Kiss que apareceram do nada.
Outro detalhe interessante foi que conheci os caras do Korzus, inclusive o Dick, que foram muito legais, falei do zine tal.
Um amigo me disse que viu o Wagner Sarcófago mas não posso garantir a veracidade.
Outra coisa que hoje é comum mas até então era raro foi ver pai cabeludo com filho cabeludo curtindo até porque a maioria tinha entre 15 e 25 anos.
Até mesmo por isso e por ser um evento único muita gente deve ter passado perrengue e ido na cara e coragem. devem ter muitas histórias.
Marco Txuca
5 de setembro de 2019 @ 00:56
Como lá tb estive, éramos 4 aqui os presentes. A estatística e a matemática explicam?!
Enquanto aguardo o sr. Rodrigo Gomes dizer q tb veio cá pro Monsters, aponto minha inveja igual a do FC: ñ lembro como fui (provavelmente metrô), mas lembro q sofri pra diabo pra voltar do Pacaembu ao metrô Clínicas na volta, algo como 500m ou um pouco mais. Como se fosse a coisa mais absurda do mundo.
Metaleiro leitinho de soja aqui só se defende dizendo q o perrengue pra mim era passar o dia sem comer. Só ia pensar em comer nesses festivais (fui nos 4 Monsters) só na saída. Se tinha comida dentro, nunca tinha $$ pra isso.
Outra história de perrengue, porém moderado: na subida na rua ao metrô Clínicas, conhecido da turma estava sem UM PÉ do tênis. Havia perdido na muvuca no show do Sabbath.
Lembro de alguém perguntar: “porra, por q vc ñ abaixou pra pegar/procurar?”. Ao q ele respondeu: “caralho, tô com o Tony Iommi na minha frente e eu lá vou lembrar de tênis?”. Embasbacado e ainda em transe por ter visto Tony Iommi e subindo mancando com um pé usando meia PRETA, de sujeira ahah
Marco Txuca
5 de setembro de 2019 @ 01:06
Dos shows, a minha expectativa com o Slayer era IMENSA. Eram minha banda favorita na época.
Estavam pra lançar o “Divine Intervention” e viriam com o novo baterista, Paul Bostaph, o q me desanimou. “Mind Control” foi a única nova tocada e ñ curti. Como a única q ñ curto no “Divine” até hoje, e q só consegui, importado, depois. Tocava Slayer com a banda q tinha na época e fiquei impressionado com a fidelidade de Bostaph às levadas e viradas (todas) de Lombardo. Paguei pau.
Kiss ñ curtia. Sabia q lançavam “Revenge”. Assisti com respeito e prestando atenção ao Eric Singer. Baterista formidável. Suicidal achei legal, mas muito pula pula; ñ conhecia direito a banda, lembro de terem tocado “Suicidal Muthafucka”, q o refrão me ficou nas idéias.
Black Sabbath já conhecia suficiente pra me arrepender mortalmente de ñ tê-los visto em 1992 aqui, no Ibirapuera, com Dio na formação lançando “Dehumanizer”. E suficiente tb pra saber q Tony Martin era furada.
O cara ñ mandou mal (teve amigo no fim defendendo), mas sempre teve o carisma abaixo de zero, e lembro até hoje de nos melhores momentos passados na Mtv Brasil, de ver Tony Iommi rir do cara no desempenho sofrível em “Headless Cross”. Putz.
Foi um show bem caça-níquel, já q estavam lançando “Cross Purposes” e nada desse tocaram; puseram Bill Ward pra tocar e valeu pela lenda, pois o desempenho (à época prestava mais atenção à bateria q aos sons) achei pífio. O cara já ñ tinha fôlego em 1994 e deu várias viradas na trave, até em sons “dele”.
Angra achava uma bosta, lembro de ter curtido “Carry On” (e o videoclipe dela era do show ali), q aliás é o único som deles q curto até hoje. Raimundos, ainda ñ havia me decidido se gostava; esperava passar o hype pra ver se era modinha, ñ prestei atenção.
Dr. Sin já tinha visto no Holywood Rock (1993?) e ñ me desgostava nem gostava. Viper sempre achei fraco, ainda mais sem o Matos, e já tinha visto a presepada na abertura pro Metallica em 1992. Achei a mesma fraude da outra vez.
Rodrigo
19 de setembro de 2019 @ 16:05
Não fui nesse, mas sim em 1995!