OBITUÁRIO DO METAL FULEIRAGEM
por Leo Musumeci
Quem me conhece sabe que mais da metade dos meus comentários quando o tema é metal nacional são sobre profissionalismo. Por isso, eu tenho a maior satisfação em escrever essa resenha que carinhosamente apelidei de “Obituário do metal fuleiragem”.

Antes que me acusem de pecar pelo otimismo, deixo claro que fuleiragem não tem nada a ver com underground. As garagens continuam a ser a sala de parto de muitas bandas, os botecos são a escola onde elas se desenvolvem e isso não vai e nem deve acabar. Mas ver um evento num padrão tão alto numa cidade de 100.000 habitantes a 200 km da capital mostra que esse profissionalismo já expandiu suas fronteiras e chegou muito longe.
Claro que Leme não é uma cidade trivial quando o assunto é metal. Pra quem a conhece como “a cidade do Claustrofobia“, tenho que dizer que a banda é muito mais consequência que causa do movimento. Leme tem uma cena antiga, que data do final dos anos 1980, quando punks e bangers se reuniam e bandas como o Destróçus faziam shows em praças e carretas de caminhão. Aliás, eu, que me mudei pra lá em 1994 e entrei nesse universo pelas portas da Kamy Music [loja de discos e promotores de excursões pra capital] e do Bárbaros, não posso deixar de dizer que, ao longo dessas décadas, muita gente tem trabalhado sério e por vezes voluntariamente pra manter essa cena se renovando e formando cada vez mais gente.
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Ainda assim, por muito tempo, havia um hiato abissal em relação ao que rolava em São Paulo. Pois afirmo sem medo de errar: nesse nível do underground não há mais. O local, os equipamentos, a produção, organização, e sobretudo as bandas não deixam nada a dever para o que vejo na capital – pra não dizer que às vezes superam.
Certamente, a ampliação do acesso a certos recursos é fundamental, mas vou por um outro lado no argumento, de ressaltar o trabalho e dedicação das pessoas envolvidas, que são um dos principais motores dessa “cultura” do rolê. O Kaiowas M.C. ter feito a sua sede toda pensada para shows de rock/metal (melhor que muitas a que já fui em São Paulo) e realizar show toda semana numa cidade como Leme não é pouca coisa.
Outra: o fato de ter um cara que conhece todo esse universo do show como Daniel Bonfogo na produção, “cobrando escanteio e cabeceando”, faz toda a diferença. Assim como falei do Estevam Romera num post sobre a Crypta em Birmingham na Bangers Brasil, repito aqui: caras como eles, dessa geração, puxam muito essa profissionalização. Daniel toca, prepara instrumentos, tem estúdio, produz show, organiza, faz a técnica, … Isso é fundamental.
Feito esse longo preâmbulo, vamos falar de música: foram 3 bandas, Militia (thrash de São Paulo), Critical Fear (thrash crossover de Iracemápolis) e Diptera (death metal de Leme), todas excelentes!

O Militia (@militiathrashviolence) chega a assustar pelo contraste entre maturidade da banda e idade dos integrantes. São um trio paulistano que se define como uma “banda política”, cujo nome é uma crítica às milícias que operam, segundo eles mesmos, “dentro e fora do Estado” (sic). Não que precisassem dizer muita coisa pra quem passou no mínimo pelas capas dos lançamentos no Spotify.
Aliás, convenhamos: precisa ter peito pra bancar esse tipo de fala no interior do Estado de São Paulo. Mas voltando ao som, fazem um thrash com elementos de hardcore, crossover, e levadas muito boas, ora cadenciadas, ora extremamente rápidas (em que se destaca o baterista João). Talvez tenham como referência principal o Surra, sobretudo nas músicas cantadas em português – o que mostra que essa geração de bandas do Surra já tem um legado, que estão moldando uma linha e uma sonoridade para o metal brasileiro e que se desdobra em bandas como o Militia.

Na seqüência, veio o Critical Fear (@criticalfear) de Iracemápolis. Um quarteto de thrash crossover mais old school, mas sem parecer datado, com vocal muito ajustado, riffs de manual, um discurso bem coeso (com letras sobre a luta pela terra, por exemplo) e uma banda muito bem entrosada. Aliás, entrosamento que vem de casa: Perci (guitarra e vocal) e Alexandre (bateria) são pai e filho.
Tive a satisfação de trocar uma boa ideia com Perci e ele falou, entre tantas coisas, sobre como incentiva a música em casa e como vivem esse sair pra tocar em família. Achei sensacional! Mas aviso: erra muito quem pensa que, por isso, fazem algo “caseiro”. Pelo contrário: lançam disco em vinil colorido, estão com turnê europeia agendada para o segundo semestre, … Coisas que muita gente de São Paulo, com décadas de estrada, nem pensa em fazer. E fazem tudo isso “na raça”, com todas as dificuldades que uma banda do interior tem de penetrar na cena paulistana. Meu destaque vai para o próprio Alexandre, também muito novo (16 anos), que parece ter encarnado o metal. Além de tocar demais (e era baixista da banda tempos atrás), faz divulgação da banda no rolê, produz conteúdos no Instagram da banda.

Por fim, veio a estreia do Diptera (@dipterametal), que era o motivo maior de estar lá. Trata-se de uma banda de death metal de amigos meus, mas, mais que isso, de uma “big band” lemense, que reúne músicos de algumas das melhores bandas da cidade que tiveram seu ápice na década de 2000: Carlinhos (Gammoth), Daniel (ex-Claustrofobia), Murilo (Crystal Lake), Flávio e Neto (Kingdom of Maggots). Infelizmente, Murilo não pôde estar no palco e se apresentaram com apenas uma guitarra, o que, no caso deles, me dá a impressão de ser um prejuízo grande. Mas nem por isso deixaram a desejar. A maioria das músicas começa já com o pé no peito e despeja intensidade do começo ao fim, num som bem brutal, com boas variações, e até passagens mais melódicas que renderam comparações de pessoas na pista com o death melódico sueco.
Particularmente, acho que fazem majoritariamente um death mais clássico, como o estadunidense de Tampa – inclusive, flertam com o groove/death ‘n roll do Six Feet Under não só no cover que fazem dos caras, mas no cover do cover que fazem da versão deles de “Sweet Leaf”. Bateria bem técnica, guitarra rápida e precisa, baixo muito firme, e vocais e presença de palco excelentes. Ainda não têm material gravado e publicizado, mas tendem a soltar algo de ponta num futuro próximo. Podem ficar de olho que não deve tardar.
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Pra arrematar, volto à questão do profissionalismo: as bandas, além de usarem equipamentos ótimos (que é a associação mais direta comumente feita); nascem já digitais, o que força a ter identidades visuais e um certo refino na produção gráfica; e fazem músicas muito maduras, que revelam não só grande dedicação, mas muito estudo e um trabalho grande com bons produtores que colaboram nessa lapidação.
Enfim, estamos falando de um ecossistema todo muito sólido que se espraia para além dos grandes centros. Excelente sinal! Um réquiem pra toda a fuleiragem de gente que se acha a última bolacha do pacote, que estagnou e que, se continuar assim, vão acabar deixando de fazer até um show por semestre que arrumam com produtor brother.
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P.s.: sigam as bandas no Instagram, se quiserem. Isso faz bastante diferença.